Regras locais específicas e informais conduzem o trabalho dos pescadores da Enseada do Mar Virado, em Ubatuba (SP), e fornecem elementos para a discussão de sistemas de manejo de recursos pesqueiros. Essa constatação é parte dos resultados de um estudo desenvolvido pela bióloga Mariana Clauzet, no Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam) da Unicamp.
“A pesca em um ambiente limitado, como uma enseada, com recursos sendo explorados por relativa quantidade de pescadores, pode ser mantida atravessando gerações, por meio de regras locais feitas pelos próprios usuários”, afirma Clauzet. A pesquisa desenvolvida pela bióloga deu origem à tese de doutorado Etnoicitiologia e uso de recursos naturais em comunidades de pescadores artesanais costeiros do Brasil, orientada pela professora Alpina Begossi, do Nepam, e defendida em dezembro.
O estudo analisou as atividades de pesca artesanal dos moradores de quatro praias da Enseada do Mar Virado: da Caçandoca e da Caçandoquinha, Praia Grande do Bonete e Praia do Peres. Foram identificados na enseada 23 pesqueiros – pontos do mar utilizados na pesca, nos quais há maior probabilidade de se encontrar determinadas espécies, por estarem associados, por exemplo, a fundo arenoso ou a lajes de pedras, ou pela proximidade a rios. Seis deles são compartilhados pelos pescadores das quatro praias e os demais são utilizados apenas pelos que residem na comunidade mais próxima.
A “regra de chegar primeiro” está entre as principais regras locais que conduzem a pesca artesanal na enseada. Aquele que primeiro instala sua rede de espera em determinado pesqueiro tem garantido o direito de explorá-lo com exclusividade durante todo o dia. Com malhagem e altura diversas, a rede de espera é fixada em posição vertical e permite a captura de peixes de vários tamanhos e que habitam diferentes profundidades. É a aparelhagem mais utilizada pelos moradores da enseada. Os pescadores que chegam depois procuram outro local para instalar suas redes, com o cuidado de não bloquear a passagem dos cardumes de peixes para as redes instaladas antes. Para isso, precisam conhecer a movimentação dos cardumes que transitam na enseada. Clauzet explica que a “regra de chegar primeiro” é feita pelos próprios pescadores artesanais e mantida por respeito. “É o manejo baseado no conhecimento local e no respeito. Não existe formalidade, mas tem sido colocado em prática e vem funcionando durante muitos anos de pesca realizada no local”, avalia a pesquisadora.
Uma família de pescadores da Praia Grande do Bonete detém a exclusividade de uso de um dos pesqueiros da enseada, onde há mais de 30 anos mantém um cerco flutuante, rede fixa de pesca cuja instalação é concedida pela Capitania dos Portos. A posse do cerco flutuante é hereditária e a equipe de pesca é composta pelo dono do cerco, seus familiares e “apadrinhados” – escolhidos por proximidade afetiva. Os demais pescadores das comunidades locais respeitam sem questionamento a exclusividade de uso do pesqueiro pela equipe do cerco, enquanto mergulhadores, turistas e pescadores de fora são afastados da região. Esse é mais um exemplo de regra informal entre os pescadores artesanais da Enseada do Mar Virado.
De acordo com o estudo, a composição da equipe do cerco evidencia a importância dos laços afetivos e de parentesco e o respeito e a reciprocidade das relações entre os pescadores da enseada. “De formalidade existe apenas o ponto onde está instalada a aparelhagem, solicitado e concedido pela Capitania dos Portos e mantido com pagamento de taxa pelo pescador responsável. Quem garante que neste local não pesquem nem mergulhem são os próprios pescadores da equipe do cerco. Eles mesmos ficam de olho e não deixam outros chegarem nesse ponto. Em geral, essa é uma regra informal respeitada pelos outros pescadores”, descreve Clauzet.
Para a pesquisadora, a manutenção da atividade de pesca artesanal dessas comunidades depende do conhecimento local compartilhado e das regras informais de uso da enseada e de exploração dos recursos naturais. “Do contrário, as comunidades não se manteriam durante tantos anos na pesca artesanal. Até porque, se não existissem regras locais, o estoque de peixes já poderia ser menor e não ser igualmente distribuído entre todos”, argumenta Clauzet. A pesquisadora acredita que, quando não há regras, um pescador afeta negativamente o outro. “Creio que o modo de vida dos pescadores locais é mantido fundamentalmente por meio dessas regras”, avalia.
Mas nem sempre a garantia das regras informais e a exclusão dos pescadores de fora da enseada são bem sucedidas e livres de conflitos. Na época da pesca de camarão-branco, atividade sazonal na Enseada do Mar Virado, pescadores artesanais locais e pescadores comerciais de outras praias e cidades, e até de outros estados, dividem o espaço. Com barcos maiores e aparelhagem de grande poder de captura, os pescadores comerciais desrespeitam a distribuição das redes de espera de camarão dos moradores da enseada, segundo descreve o estudo. As hélices das embarcações comerciais de arrasto danificam as redes, prejudicando os pescadores artesanais locais, que perdem dias de trabalho e ainda gastam dinheiro no conserto da aparelhagem.
De acordo com as observações de Clauzet, certas vezes, os pescadores locais se organizaram em grupos e foram aos barcos comerciais defender seu espaço, mas o encontro só gerou discussões e ameaças. Na avaliação da pesquisadora, o conflito entre eles é o principal problema do manejo da pesca na Enseada do Mar Virado. “Já existe a lei que proíbe barcos de arrasto comerciais de pescarem próximos à costa. O problema é a falta de fiscalização”, afirma a Clauzet. Segundo o estudo e de acordo com a legislação pesqueira, devido ao porte, à maior autonomia e à capacidade de captura, as embarcações comerciais de arrasto não devem permanecer em águas rasas. “A fiscalização, com multas aos pescadores que descumprem a lei, seria uma solução, diminuiria o número de embarcações ilegais no interior da enseada”, defende a pesquisadora.
Clauzet conta que, até o momento, a interferência do Estado nas atividades de pesca na Enseada do Mar Virado é pequena. A Marinha fiscaliza embarcações ilegais de turismo, principalmente no verão, e o Instituto de Pesca do estado de São Paulo estabeleceu e regula a maricultura – cultivo de mexilhão – na região. “A maior intervenção do Estado no manejo local poderia vir para garantir o espaço aos pescadores artesanais locais, fiscalizando e punindo embarcações de arrasto de camarão”, avalia a pesquisadora.
O uso do conhecimento ecológico local, as regras informais de exploração dos recursos e mesmo os conflitos estabelecidos na Enseada do Mar Virado indicam que há um sistema pré-existente de manejo dos recursos pesqueiros na região. De acordo com o estudo, uma vez solucionados os problemas locais, as regras informais podem contribuir para a inclusão dos pescadores na execução de planos futuros de manejo e co-manejo dos recursos pesqueiros da enseada. No co-manejo, a população local – neste caso os pescadores artesanais – participa do processo de conservação dos recursos naturais, já que o manejo é compartilhado entre os usuários desses recursos e as agências ambientais.
Para Clauzet, as regras locais de sistemas pré-existentes de manejo informal podem contribuir para planos de manejo formal, porque já existem e são postas em prática há anos. De acordo com o estudo, a realidade descrita para a Enseada do Mar Virado pode fornecer elementos também para futuros planos de co-manejo e manejo pesqueiro em outras comunidades com realidade semelhante em relação à pesca. “O governo e os pesquisadores que chegam a uma comunidade de pesca artesanal precisam estar atentos ao que já acontece ali em termos de uso de espaço e recursos explorados”, argumenta a pesquisadora, que acredita que regras e códigos de conduta e comportamento locais devem ser respeitados e preservados. “Só cabe ao governo e aos órgãos ambientais garantir isso. Sem novidades, sem novas leis e regras. É essa a lição que deve ser passada aos tomadores de decisão de planos de manejo relativos à pesca artesanal, no Brasil e em todos os lugares. Olhar e respeitar o que os pescadores artesanais já fazem, identificar os pesqueiros que eles utilizam e os conflitos e, a partir daí, garantir esses lugares de pesca a eles somente”, sentencia Clauzet.
Com Ciência