UMA INESQUECIVEL CAIÇARA…..Idalina Graça


No emaranhado deste livro, em que relato alguns fatos relacionados com gente nossa, sinto-me obrigado a atender à curiosidade daqueles que, agora, por aqui passando, querem saber quem foi a Solitária de Iperoig, a maviosa escritora do TERRA TAMOIA.

A Solitária de Iperoig – pseudônimo de Idalina do Amaral Graça – foi, indiscutivelmente, uma das personagens mais notáveis e marcantes na vida de Ubatuba.
Nascida em Ilhabela – quando o Litoral Norte se debatia na mais angustiosa crise de decadência -, órfã, ainda na infância, enfrentando no seio da família sérios problemas de sobrevivência, sem meios de freqüentar a escola primária, na qual não conseguiu ao menos dois anos de comparecimento, a ela só cabia seguir o exemplo dos jovens caiçaras daquele tempo: emigrar. Ir para Santos onde facilmente encontraria mercado de trabalho e, conseqüentemente, sorriam promessas de dias mais tranqüilos, mais felizes.

Foi assim que Idalina, em tenra idade, totalmente só, ignorante, desprotegida, abandonada ao léu, soube enfrentar a cidade grande, com todas as vicissitudes, todos os seus vícios e misérias, e, com galhardia, de ânimo forte e cabeça erguida, pôs-se a lutar na esperança de atingir destino melhor.

Enfrentou o pior. Foi empregada doméstica. Vagou de casa em casa suportando, sem meios de reação, admoestações, reprimendas e a interminável série de injustiças que só acontecem aos fracos e desprotegidos.

Mas, no decurso dessa penosa caminhada, sempre que podia suavizava sua desdita na leitura de todo material impresso que lhe chegava às mãos, desde retalhos de jornais até compêndios que obtinha por empréstimo de raras pessoas compreensivas, das quais conseguia se aproximar.

Foi esta a sua escola, foi assim que conseguiu acumular algum conhecimento, para que, no futuro, pudesse extravasar em rústicas palavras toda a sensibilidade que lhe transbordava da alma!

Idalina trabalhava, sofria e sonhava!

Certo dia o destino apresentou-lhe aquele que seria o fiel companheiro de seus dias pela vida afora, Albino Alves da Graça, igualmente caiçara, natural de Ubatuba, que também lutava por melhores dias na mesma cidade praiana.

Casados, mas desambientados na trepidação da cidade grande e saudosos do bucolismo das regiões em que nasceram, vieram para Ubatuba, onde, depois de pouco tempo como comerciantes na Enseada, estabeleceram-se com pequeno e modesto hotel na cidade, no Largo da Matriz, no qual Idalina se multiplicava no desempenho de todas as tarefas, desde faxineira, arrumadeira, lavadeira, até cozinheira.

Quando o hotel esvaziava – porque raros visitantes procuravam Ubatuba naquele tempo – Idalina lia e escrevia. E escrevendo às ocultas, passava para o papel o rico manancial de sua fértil imaginação.

E quantas vezes, atravessando a praça ia à minha farmácia, que ficava em frente ao hotel, para que eu datilografasse admiráveis páginas literárias, rústicas na forma, mas de conteúdo transbordante de lirismo e poesia.

– Estou guardando todos os meus escritos – ela me dizia – porque um dia hei de publicá-los.

E assim aconteceu. Willy Aureli, o sertanista desbravador dos sertões de Goiás e Mato-Grosso, o brilhante jornalista paulistano, seu hóspede freqüente e seu amigo íntimo e fraterno, rebuscando guloseimas nas prateleiras da cozinha, encontrou seus originais atulhando o repositório de uma lata vazia. Foi, portanto, Willy Aureli quem, burilando-as, levou suas produções às páginas dos jornais da Capital, tornando conhecida aquela que passou a ser denominada “Escritora Iletrada” – a Solitária de Iperoig.

E nessa condição acercou-se de grande número de amigos e admiradores, literatos como ela, entre os quais, além de Willy, destacavam-se Monteiro Lobato, Virgínia Lefevre, Paulo Florençano, Evaldo Dantas, Wladimir Piza, Guisard Filho, Audálio Dantas, Urbano Pereira, Luiz Ernesto Kawall, Cesidio Ambrogi, Gentil de Camargo e tantos outros, com os quais manteve estreito e cordial relacionamento.

Mas a divulgação dos seus escritos e a honrosa plêiade de amigos conquistados não lhe deram plena satisfação. É que a esse tempo seu marido apresentava grave infecção num dedo do pé, enfermidade cuja intervenção cirúrgica era inevitável.

Transferido para Taubaté, ante a absoluta falta de recursos nesta cidade, depois de longa temporada hospitalizado, devido à progressão do mal, que lhe atingiu o membro por inteiro, Idalina trouxe de volta seu marido, mutilado, devido à amputação da perna atingida.

Inicia-se aí a fase de maior sacrifício, de total devotamento e abnegação daquela mulher, multiplicando-se em mil atividades para que nada faltasse ao homem que não lhe negou o seu nome, nos dias incertos e atribulados de sua juventude em Santos.

Passaram-se meses e Albino faleceu.

Enviuvando sem descendentes, sentindo-se só, desprendida como sempre foi, doou seus poucos haveres – sua casa, seus utensílios – aos menos favorecidos, com a preocupação de fazer o bem aos pobres, fracos, desamparados e enfermos, enfim, a todos quantos necessitassem de u’a mão amiga ou de uma palavra de consolação.

Surpreendentemente, com toda essa gama de encargos e preocupações, de trabalhos e sofrimentos, Idalina ainda encontrava momentos para pensar e escrever!

Com a ajuda de amigos dedicados, entre eles o Mecenas brasileiro, Francisco Matarazzo Sobrinho, editou seu primeiro livro – TERRA TAMOIA – preciosa obra literária, infelizmente esgotada, esperando-se que amigos remanescentes promovam uma nova edição.

Posteriormente editou BOM DIA UBATUBA, e dava andamento a uma terceira obra quando a morte traiçoeira veio arrebatá-la do nosso convívio.

Esta, a Solitária de Iperoig, Idalina do Amaral Graça, mulher excepcional, de passagem marcante na História de Ubatuba.


FONTE
UBATUBA – LENDAS & OUTRAS ESTÓRIAS – Washington de Oliveira (Seu Filhinho)

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