Por Eduardo Antonio de Souza Nettoarticulista@ubaweb.com
Toda cidade pequena tem seus personagens pitorescos, são suas “figurinhas carimbadas”, conhecidos de todos por se destacarem com suas excentricidades. Não são homens que figurarão nos livros de história, todavia, ficarão para sempre na memória coletiva.Em Ubatuba, sempre fomos férteis desses personagens que faziam a vida mais alegre. Não acredito que hoje em dia as cidades possam tê-los mais – elas deixaram de ser o espaço das individualidades, para ser o da massa uniforme, sem graça e sem memória. Hoje elas se voltam estupidamente para a contemporaneidade incessante, para um eterno presente.Dessas figurinhas, o Dito Cambito é, sem dúvida, das que mais carinhosamente guardo. Um personagem de minha infância. O Dito foi o operador do projetor de filmes do Cine Iperoig e era respeitado por mim e pela garotada fanática por cinema. Na adolescência, passei muito tempo sem vê-lo. Alguns anos mais tarde, encontrei-o pelas ruas da cidade. Não era mais o Dito que conhecera, o operador daquela máquina de fantasias: magro, esquálido, olhos vermelhos de cachaça, cultivando um doce far-niente, vadiando trôpego pelas ruas com a camiseta do São Paulo Futebol Clube, dando broncas, resmungando de tudo e de todos. Do Dito Cambito contam-se muitas histórias. Tem, por exemplo, aquela do dia em que resolveu acompanhar a procissão de chinelo-de-dedo, estando com uma baita ferida infeccionada no dedão de um dos pés. Um machucado doloroso à beça, latejante, mal podia andar, mesmo assim, lá foi o nosso Dito.Arranjou uma brecha na fila e lá pelas tantas, a procissão seguindo compassada pela rua, um infeliz, um desavisado, deu de pisar no pé machucado do Dito. Oh, santa mãe da misericórdia! Oh, dor desgramada, alucinante! De sair lágrimas daqueles olhos vermelhos da marvada branquinha. Dito olhou para o alto, para o andor de Nossa Senhora, desgostoso e contrariado, e tascou: – Nossa Senhora que me perdoe, mas eu não fico mais nessa merda de procissão! … E saiu do cortejo, resmungando.Não creio que o ocorrido tenha sido levado a débito de sua conta-corrente divina. Tenho certeza de que foi perdoado no ato. Ele deve estar no céu operando o projetor do também falecido Cine Iperoig para um bando de caiçaras que já se foram.
FONTE : ARQUIVO DO SITE ” UBAWEB”