Já vesti branco, calcinha nova, pulei ondas, não dei as costas ao mar, acendi velas, presenteei Yemanjá… Até soube de recursos mais ousados, como mostrar as nádegas à Lua na hora “h”, mas preferi parar num bom prato de lentilhas… Este comportamento, embora seja comumente encontrado entre os adolescentes – em que o pensamento mágico fica em evidência – é também compartilhado por muitos maduros que apostam em pequenos rituais para garantir a chegada de um feliz ano novo. Superstições, pensamentos positivos, cada um ao seu modo carrega uma receita e na maioria dos casos a fórmula é pronta, ou seja, fruto de tradições.
Ainda que sejamos considerados, desde o renascimento, uma civilização moderna, que por definição é o que se opõe a tradicional (e não sinônimo de contemporâneo), nós ainda executamos tradições, muitas já deturpadas, mesmo sem saber quando, onde e porque surgiram. O que vale nessa hora é: “Dá sorte? Então vamos que mal não vai fazer…”.
Teorias muito antigas, em moda atualmente, que nos lembram a importância do poder dos nossos pensamentos, são talvez boas explicações para que estas ações – ainda que sem sentido racional – sejam válidas. Pouco importa, portanto o cenário, o figurino ou a alimentação da virada; daremos lugar à importância dos pensamentos e sentimentos gerados na fatídica noite.
Ora, mas se dermos tanta responsabilidade à qualidade destes pensamentos e sentimentos, entramos em um novo problema: E se justo naquela noite não estiver bem e por algum motivo não tiver seus melhores pensamentos e sentimentos? E se a festa for horrível, e se beber demais e passar mal na virada? E se estiver com a família e ter pensamentos agressivos contra a sogra?
Boa notícia: Teremos o dia seguinte e se tudo correr bem o outro e o outro também para você cumprir sua lista, ser a nova mulher que prometeu; fazer aquela diferença no trabalho; começar a reciclar o lixo em casa; ser mais paciente, etc, etc, etc.
Dez, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um… E nada mudou?
Nosso calendário nos ilude de que um novo ciclo se inicia e que é agora ou nunca, ou de fato uma nova contagem se faz necessária para renovarmos nossos votos a nós mesmos? Mas a cada 365 dias não seria pouco?
O que pretendo refletir está na relação entre o que é idealizado e o que é realizado efetivamente. Se o ano será o que fizermos dele (salvo os tais mistérios entre céu e terra…), resultado de nossos planejamentos e atitudes, deveríamos nos debruçar mais sobre as ações que realizamos e principalmente nas que deixamos de realizar, pois mesmo com boa dose de razão e espírito estratégico, o que se observa é um comportamento de sabotagem constante aos próprios planos traçados.
A auto sabotagem é um fenômeno inconsciente que nos torna inimigos primeiros de nós mesmos. E um inimigo disfarçado de amigo não representa perigo, portanto, sempre iremos encontrar algo ou alguém responsável pelo nosso fracasso: “Parei a terapia porque estava cara, não vou mais à aula de yoga porque pego muito trânsito, não farei o curso de inglês porque…”. Sempre haverá uma justificativa sensata para camuflar nossa preguiça, orgulho, medo de sair da zona de conforto, de perder os papéis exercidos, ou ainda por algum motivo, não nos consideramos merecedores do sucesso, ou desejamos nos punir por um sentimento de culpa inconsciente.
Cada vez que desconfiamos de nossa capacidade de superar obstáculos, cultivamos um sentimento de covardia interior que bloqueia nossas emoções e nos paralisa. Muitas vezes, o medo da mudança é maior do que a força para mudar. Por isso, enquanto tivermos resistência em rever nossos erros e aprender com eles, estaremos bloqueados. Não haverá uva ou roupa branca que dê jeito!
O ciclo mais importante é o de 24h e não o de 365 dias. Para cada final de dia sim, deveríamos escolher um pijama legal pra fechar a noite, preparar uma janta saudável, falar o quanto ama a quem se ama, talvez um vinho? Talvez fogos por ter cumprido mais um dia? Alguns deles realmente mereceriam… Ou mais uma vez, esquecendo o cenário e o figurino, apenas refletir sobre esse pequeno ciclo, lembrando o que fez de bom, se perdoando pelo que não cumpriu ou não fez bem, sem culpas, sem cobranças excessivas.
Como nos lembram os orientais, nascemos a cada inspiração, morremos a cada expiração, a todo instante, um novo ciclo, novas células, um recomeço…
Portanto, a ginástica não precisa esperar novamente a próxima 2º feira!
Feliz dia novo!