O psicanalista Contardo Calligaris discute em seu livro “Cartas a um jovem terapeuta” os traços de caráter que procuraria em quem quisesse se tornar psicoterapeuta. Esse trecho é uma maneira de aguçar a vontade de ler esse livro e descobrir alguns desafios da nossa profissão.
4) O quarto e ultimo traço que gostaria de encontrar no futuro psicoterapeuta é uma boa dose de sofrimento psíquico. Desaconselho a profissão a quem está “muito bem, obrigado”, por duas razões.
Primeiro, uma parte essencial da formação de um terapeuta que trabalhará com as motivações conscientes ou inconscientes de seus pacientes consiste no seguinte: o futuro terapeuta deve ele mesmo, ser paciente durante um bom tempo. Certo, é possível, aparentemente, submeter-se a uma terapia ou a uma psicanálise só por razões didáticas, para aprender o método ou, como dizem alguns, para se conhecer melhor. Mas insisto no “aparentemente”, pois de fato, é improvável que uma psicanálise aconteça sem que um sofrimento reconhecido motive o paciente. O processo não é necessariamente desagradável, mas pede uma determinação e uma coragem que podem falhar mais facilmente em quem não precisa de tratamento. Por que diabo me aventurei a explorar porões de minha cabeça, lugares malcheirosos e arriscados, se não for empurrado pela vontade de resolver um conflito, acalmar um sintoma e conseguir viver melhor? Uma terapia puramente didática é geralmente uma simulação de terapia.
E eis uma segunda razão para preferir que o futuro psicoterapeuta traga consigo uma boa dose de sofrimento psíquico e precise se curar. Durante os anos de sua pratica clinica, no futuro, muitas vezes você duvidará da eficácia de seu trabalho. Encontrará pacientes que não melhoram, agarrados a seus sintomas mais dolorosos como um náufrago a um salva-vida; viverá momentos consternados em que as palavras que lhe ocorrerão parecerão alfinetes de brinquedo agitados em vão contra forças imensamente superiores. Nesses momentos (que acredite, serão freqüentes) será bom lembrar que você sabe mesmo (e não só pelos livros) que sua prática adianta. Sabe porque a pratica que você propõe a seus pacientes já curou ao menos um: você.
Resumindo, meu jovem amigo que pensa em ser terapeuta, se você sofre, se seus desejos são um pouco (ou mesmo muito estranhos), se (graças à sua estranheza) você contempla carinho e sem julgar (ou quase) a variedade de condutas humanas, se gosta da palavra e se não é animado pelo projeto de se tornar um notável de sua comunidade, amado e respeitado pela vida afora, então bem-vindo ao clube: talvez a psicoterapia seja uma profissão para você.
Abç.
Calligaris, Contado – Cartas a um jovem terapeuta: reflexões para psicoterapeutas, aspirantes e curiosos – Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.